ATEÍSMO (ARGUMENTOS)


  •  O ônus da prova

 Todos os teístas (isto é, as pessoas que acreditam na existência de uma ou mais divindades) afirmam existir alguma divindade, e por isso cabe a eles o ônus da prova dessa afirmação. Em milhares de anos de teísmo, essa prova ainda não foi encontrada, e não há sinal de que um dia venha a ser. Os chamados argumentos de existência não resistem à crítica.

Há outros motivos para que o ônus da prova caiba aos teístas. 

De todas as coisas cuja existência se pode conjeturar, tudo indica que apenas uma ínfima minoria existe de fato. Sabemos que existe uma pessoa chamada Britney Spears, mas não deve haver uma pessoa idêntica a ela em todas as suas moléculas, com a exceção de 17 fios de cabelo, que são brancos. Também não deve haver uma Britney com o dobro do tamanho da original. Da mesma maneira, não esperamos a existência de um Sol idêntico ao nosso, mas com uma cara sorridente desenhada em sua superfície, ou uma estátua da ilha de Páscoa, em tamanho real, esculpida em diamante.

Em suma, para cada coisa que existe de fato, há infinitas outras que não existem. A existência, portanto, é uma qualidade extremamente rara dentre todas as entidades que se pode imaginar. Tomando uma entidade imaginada ao acaso, a probabilidade é de que ela não exista (e se parece não ser assim é porque nossa imaginação costuma se restringir às coisas que existem). 

Assim, se assumirmos que devemos aceitar a existência de alguma coisa até que sua inexistência seja provada, então certamente vamos chegar à conclusão de que existe uma Britney Spears roxa e outra com bolinhas azuis, já que não podemos provar a inexistência delas (talvez as Britneys coloridas não se mostrem a qualquer um, e tenham propósitos misteriosos). Essa atitude certamente nos levará a uma enorme quantidade de erros de avaliação. Vamos acertar com muito, muito, mas muito mais frequência se tomarmos a inexistência como a posição "default" (padrão), e só aceitarmos a existência se ela nos for provada.

De fato, é isso que fazemos todos os dias, em especial no que diz respeito a alegações extraordinárias. Se alguém afirma que consegue flutuar no ar sem ajuda de equipamentos, não será levado a sério antes que possa provar o que diz. O mesmo se dá com divindades. Se você é monoteísta, também não leva a sério as alegações de existência de todos os demais deuses além do seu. Bertrand Russel tem uma famosa passagem a respeito da inversão do ônus da prova:

Muitos indivíduos ortodoxos dão a entender que é papel dos céticos refutar os dogmas apresentados – em vez de os dogmáticos terem de prová-los. Essa ideia, obviamente, é um erro. De minha parte, poderia sugerir que entre a Terra e Marte há um pote de chá chinês girando em torno do Sol em uma órbita elíptica, e ninguém seria capaz de refutar minha asserção, tendo em vista que teria o cuidado de acrescentar que o pote de chá é pequeno demais para ser observado mesmo pelos nossos telescópios mais poderosos. Mas se afirmasse que, devido à minha asserção não poder ser refutada, seria uma presunção intolerável da razão humana duvidar dela, com razão pensariam que estou falando uma tolice. Entretanto, se a existência de tal pote de chá fosse afirmada em livros antigos, ensinada como a verdade sagrada todo domingo e instilada nas mentes das crianças na escola, a hesitação de crer em sua existência seria sinal de excentricidade. 

Uma outra posição possível é imaginar que nem existência nem inexistência estão decididos enquanto não aparecerem as provas de qualquer um dos lados. Assim não se assume uma posição padrão, e a questão fica em suspenso. Essa é uma das posturas que leva ao agnosticismo, o que segundo as definições que adotamos aqui, é também uma forma de ateísmo (vide as definições na página de Perguntas e Respostas).



  • "Ninguém é capaz de provar a sua inexistência, portanto o deus X existe."

  Esse argumento tenta inverter o ônus da prova (vide acima). Através dele, pode-se provar a existência de absolutamente qualquer coisa. Por exemplo: "ninguém foi capaz de provar a inexistência do coelhinho da páscoa, então ele existe". Se esse "argumento" supostamente prova a existência de coisas inexistentes, é porque ele não é válido.

Inverter o ônus da prova pode parecer um pedido justo, mas sabemos que não existe prova de inexistência para grande parte das coisas inexistentes, como todas variações em torno da Britney Spears que citamos no argumento do ônus da prova. E os próprios teístas aceitam que o ônus da prova é de quem afirma a existência quando confrontados com pessoas que crêem em outros deuses. Os cristãos também não conseguem provar a inexistência dos deuses do hinduísmo, por exemplo, mas isso não os faz aceitar a existência de Shiva. Portanto, não deve esperar o mesmo de um ateu, com relação a qualquer deus que seja.



  • A prova da fé 

 Com muita frequência se afirma que a fé dá provas, ou que a própria fé é uma prova. Mas ter fé é somente uma atitude, interna e pessoal como todas as atitudes. Ela nada nos diz sobre a realidade externa ao indivíduo. Se eu tiver fé que o Papai Noel existe, isso mostra que ele existe ou que eu me recuso obstinadamente a aceitar sua inexistência?

A fé não dá respostas, ela apenas impede as perguntas. "Ter fé" é apenas uma expressão bonita para o que significa apenas e tão-somente desligar-se da realidade. E as próprias pessoas de fé reconhecem que ela não prova nada quando são confrontadas com fés diferentes. Atualmente existe cerca de um bilhão de muçulmanos no planeta, muitos deles com fé profunda no islamismo. Mas isso não parece fazer a menor diferença para os dois bilhões de cristãos, e vice-versa. Se a fé apontasse a verdade com um mínimo de segurança, ela não estaria dirigida a dois sistemas incompatíveis de crenças -- e muito menos aos milhares de deuses e religiões que existem e já existiram.



  • "Sei que o deus X existe porque ele faz (ou fez) milagres"

Como muitas supostas provas de existência divina, esta contém uma hipótese oculta -- ou seja, uma hipótese que precisa ser verdadeira para que a prova funcione, embora isso não seja dito explicitamente. A hipótese oculta aqui é a de que só deuses fazem milagres -- e, em especial, o deus cuja existência se está tentando provar. Um milagre poderia provar a existência de Thor, Amon-Rá, Tupã ou qualquer outro deus. E se a mula-sem-cabeça também for milagrosa, então os milagres poderiam provar a existência da dita mula.

Além disso, é preciso considerar que a afirmação de que existem milagres também é extremamente problemática, essencialmente por dois motivos. O primeiro é a chamada terceira lei de (Arthur C.) Clarke: "qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de mágica". Em outras palavras, qualquer candidato a milagre pode ser apenas o produto de uma tecnologia avançada, mas não milagrosa. Daí vem o ditado de que "para os peixes do aquário, quem troca a água é Deus".

O outro problema com os alegados milagres é que simplesmente não existe nenhum caso cuja comprovação seja tão sólida quanto a necessária para uma prova tão importante quanto essa. Eventos que se imaginam ser milagrosos sempre podem na realidade ser o produto de mentiras, enganos, desconhecimento de leis naturais, informações incompletas ou errôneas, ou ainda uma combinação desses fatores.



  • "Se o deus X não existe, de onde veio Y?"

Alguns tipos de argumentação são sólidos apenas na aparência são chamados de falácias. A afirmação acima constitui a falácia da ignorância: só porque se ignora a existência de respostas alternativas a um problema, isso não significa que possamos adotar a resposta que bem entendemos. Por exemplo, até muito recentemente na história humana, era perfeitamente lícito usar argumentos como "mas se Zeus não existe, de onde vêm os raios?". Aqui fica claro que o desconhecimento de meteorologia e eletromagnetismo não é uma prova da existência de Zeus. O mesmo se dá quando o argumento se refere a outros deuses, ou a outros denômenos de origem desconhecida para o interlocutor.

Este é um dos mais populares "argumentos" pela existência de deuses, embora os valores de Y dependam muito do lugar e da época. Fenômenos climáticos e sísmicos já estiveram muito em moda, mas atualmente estão em baixa. Hoje em dia os mais comuns são "o homem", "a vida", "a Terra" e "o universo", e o motivo é claro: já é de conhecimento geral que existem explicações 100% naturais e até triviais para o clima e os terremotos.

Deuses sempre foram chamados para explicar o desconhecido, e todo deus que cumpre essa função tem um nome: deus das lacunas. Isso porque esse deus preenche as lacunas do conhecimento de uma época. O problema é que à medida que o conhecimento científico avança, ele inexoravelmente preenche essas lacunas, tomando lugar dos deuses e deixando cada vez menos espaço para eles. Quem acredita no divino porque não sabe de onde veio a vida está agindo de maneira idêntica a quem acreditava no divino por não saber de onde vem a chuva. Só muda o objeto da ignorância. Dar nome de "Deus" à própria ignorância não parece ser uma boa idéia.

Além disso, existe o agravante de que já existem respostas bastante sólidas, apoiadas em um amplo espectro de evidências independentes que se confirmam mutuamente, a respeito da formação de nossa espécie, assim como de estrelas e planetas, inclusive a Terra e o nosso sol. A ciência do século vinte foi extremamente útil para dar as primeiras respostas sobre o surgimento da vida e do universo, que permanecem hoje na fronteira do conhecimento. Assim que essa fronteira for rompida, se o passado nos serve de guia, parece que o argumento da ignorância continuará popular e as pessoas que crêem em deuses se agarrarão a outro mistério ainda não desvendado, perfeitamente imunes às incontáveis lições que a história nos deu sobre os cada vez menores deuses das lacunas. O fato de os deuses encolherem quando a ciência avança é um dos diveros motivos pelos quais muitos ateus entendem que ciência e religião são incompatíveis.





  • "Se o deus X não existe, a vida não tem sentido."

Poucas pessoas notam, mas isso não é sequer um argumento: é apenas a expressão do desejo pessoal de que esse deus exista para dar sentido à sua vida. Quem pensa assim está apenas afirmando que sua vida pode não ter sentido. A afirmação nada nos diz sobre a existência desse deus. Analogamente, quem diz "se não existe um milhão de dólares na minha conta, então a vida não tem sentido" definitivamente não está provando a existência daquele milhão de dólares. 

Esse tipo de pensamento se chama wishful thinking, algo como "raciocínio desejoso", que ocorre quando o desejo de que certa coisa seja verdade acaba levando à crença de que ela seja verdade. Além de incorrer em wishful thinking, este raciocínio também peca por assumir como verdadeira a idéia de que a vida não tem sentido sem deuses. O fato é que existem centenas de milhões de ateus no mundo, e nada indica que suas vidas estejam vazias de sentido. Aqui também pode estar em curso o preconceito contra os ateus, ou também o fato de que a vida potencialmente sem sentido é a do próprio indivíduo que crê.





  • "Se você acreditar na existência do deus X, poderá ir para o paraíso, caso ele exista; caso ele não exista você não tem nada a perder acreditando nele. Por outro lado, se você não acreditar e ele existir, irá para o inferno."

Esse é mais um "não-argumento", pois nada nos diz a respeito da existência de deuses. É apenas uma consideração calculista de como agir com relação ao ateísmo, considerando custos e benefícios. Ainda que fosse verdade que é vantajoso acreditar em deuses (e não é), os ateus estão em busca imparcial da verdade, e não de mentiras com grandes potenciais de ganho.

Mas analisemos o caso mesmo assim: será o teísmo realmente mais vantajoso do que o ateísmo? Essa proposta se chama aposta de Pascal, e está cheia de falhas. Em primeiro lugar, Pascal desconhecia ou preferia ignorar a existência de muitos outros deuses além da divindade específica do cristianismo. Como a aposta não indica em qual deus crer, o crente ainda tem uma escolha muito problemática. Se ele escolher crer no deus X para evitar o inferno I, ambos inexistentes, pode ser que ele acabe indo para o inferno I' do deus X', esses bem reais. Ou seja: a aposta pode sair pela culatra porque o indivíduo acreditou no inferno errado, motivo pelo qual esse problema é conhecido por "evitar o inferno errado".

Além disso, não é verdadeira a idéia de que nada se perde acreditando em um deus que não existe. As pessoas dedicam enormes quantidades de tempo, dinheiro e energia em atividades ligadas a essa crença, isso para não falar nas pessoas que morrem ao rejeitar a medicina em favor de curas milagrosas, nas guerras religiosas que sempre assolaram a humanidade, nas Cruzadas, a Inquisição, perseguições contra religiosos e ateus por motivos religiosos, o sofrimento dos indivíduos por desobedecer entidades que não existem, a discriminação contra mulheres e homossexuais... a lista é longa. E ainda que nada disso existisse, se é verdade que para o religioso nada se perde acreditando em mentiras, então quem tem sérias explicações a dar é ele, e não o ateu.

Caso o deus em questão seja onisciente, temos mais um problema pois ele também teria que ser ingênuo ou burro o suficiente para aceitar como válida uma crença formada a partir de um cálculo de conveniência. E mais: para a aposta funcionar, seria necessário que conseguíssemos acreditar naquilo em que não acreditamos, por um puro ato de vontade. Você seria capaz de acreditar em papai Noel se isso supostamente significasse que você vai ganhar um presente? 

Os problemas não cessam aí, pois o argumento assume que só existem deuses do tipo que recompensa a creça e punem a descrença. Pode muito bem ser que existam deuses que valorizem a intelectualidade e a busca honesta da verdade, e que punam a fé, e recompensem a busca honesta pela verdade. Nesse cenário, a melhor aposta é mesmo descrer.

Por fim, caso existisse mesmo um deus que punisse seres humanos eternamente por "crimes de opinião", independentemente de quão boas e justas tenham sido suas vidas, então esse não seria um deus digno de ser adorado.



  • "Todo mundo acredita em Deus. Todas as civilizações têm religião. Isso mostra que Deus existe."

Não, não mostra. Uma mentira repetida mil vezes não vira verdade, assim como um erro muito popular não se torna um acerto. Além disso, é falso que todas as civilizações têm religião (a tribo dos Pirahãs, por exemplo, aqui mesmo no Brasil, não tem crença em nenhuma divindade. Curiosamente, um missionário inglês destacado para convertê-ls acabou se tornando ateu.) e é obviamente falso que "todo mundo" acredita em algum deus -- quanto mais no deus dos cristãos. Para cada cristão existem hoje dois não-cristãos. Se muita gente tem a impressão de que não existem ateus é porque muitos descrentes se sentem forçados a ficar "no armário" devido ao preconceito e à discriminação que sofrem. Os cerca de 1,4% de ateus no Brasil correspondem a quase o triplo do número de umbandistas, candomblecistas, judeus e budistas juntos.

A idéia de que a popularidade de uma crença prova sua veracidade, ou ao menos é um bom indicador, também é uma falácia. Chama-se ad populum. Muitas crenças bastante populares hoje estão desacreditadas, tanto sobre a natureza como sobre a moral: a idéia de que é certo escravizar ou subjugar certos grupos de pessoas e a idéia de que a Terra é plana ou de que o Sol gira em volta dela são alguns dos exemplos mais conhecidos. O próprio cristianismo já foi uma crença de um pequeno grupo de pessoas em uma época em que os deuses do Olimpo faziam muito mais sucesso. Utilizando o ad populum, seríamos levados a concluir que naquela época Zeus e Hércules realmente existiam, já que a crença neles era popular



  • "Deus é como o amor: você não pode provar que ele existe, mas sabe que ele está lá"

A analogia é realmente muito boa, mas só prova que, assim como o amor, esse deus só existe dentro da cabeça das pessoas, e não fora.

Talvez esse argumento sirva para deixar bem claro que nem tudo que sentimos intensamente existe fora de nós. O mesmo vale para todos os outros sentimentos e sensações que conhecemos: ódio, angústia, felicidade, e tudo que vem dos nossos sentidos. Esses fenômenos povoam nossa mente e nosso mundo,e sem dúvida são da maior importância para nós, mas isso não quer dizer que eles vão além das fronteiras do nosso sistema nervoso. O mesmo se dá com os deuses. (volta





  • "Existem muitas coisas que não podemos ver, mas sabemos que existem: o ar, as bactérias, os átomos, etc. O mesmo se dá com Deus."



A questão da existência não tem nada a ver com a visão: trata-se de provas ou ao menos evidências. E há muitos tipos de evidências além das visuais. Temos todos os sentidos além da visão, e ainda a lógica e uma enorme variedade de aparelhos e técnicas que nos ajudam a coletar evidências e provas sobre o ar, as bactérias, os átomos e todas as coisas cuja existência damos como certa. Só na esfera místico-religiosa existem entidades cuja existência há quem aceite pacificamente sem evidências, ou mesmo apesar de evidências contrárias: deuses, anjos, espíritos, fantasmas, almas, "energias", etc.

Pode-se mostrar a existência do ar através de qualquer um de uma série de experimentos simples. O mesmo vale para bactérias e átomos. Só temos certeza de que eles existem em virtude dos resultados conclusivos desses experimentos, que podem ser reproduzidos em qualquer lugar do mundo, sempre com os mesmos resultados, por pessoas de qualquer crença. Mas no caso de divindades, esses experimentos simplesmente não existem, ou são apenas experiências internas que não podem ser reproduzidas por outras pessoas.


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